O
Brasil tornara-se uma paixão para Juquim de Nhá Bia de Rufino desde o dia em
que desembarcou do palhabote Carvalho de
Nhô Firrim no Porto Grande de São Vicente. Só de
ver os grandes barcos
brasileiros e ouvir a música que saía por todos os cantos, era suficiente para
atrair a curiosidade de uma criança vinda dos confins de Santo Antão. Com a
idade de dez anos e na companhia dos pais, deixou a sua ribeira devido às secas
e às injustiças agrárias, para irem enfrentar outra luta, mas mais digna, nas
companhias inglesas do Porto Grande, onde havia melhores salários e os
sindicatos defendiam o direito dos trabalhadores. Deixava assim o seu Santo
Antão, onde os proprietários agrícolas tinham pactos com o diabo para mandar
aquelas secas criminosas que obrigavam os pobres camponeses a venderem por tuta
e meia os seus nacos de terra. Com o tempo, tornara-se num menino de São
Vicente, como outros das ilhas, por amor à ilha que os acolheu, integrando-se
em todas as atividades da sociedade, voltando raramente à ilha de origem.
Frequentou a escola de Nhô Jom Miranda, fez-se torneiro-mecânico na Oficina da
Pontinha, sob a direção do mestre Teodoro Gomes (mais conhecido por Qunque) e chegou a frequentar a banda musical
regida pelo professor José Reis, onde aprendeu a tocar vários instrumentos de
sopro. Tinha todas as características de um verdadeiro mindelense. Aliás, ser
mindelense não quer dizer ter-se nascido em São Vicente, mas sim pela maneira
como se vive na sociedade.
Fez
o serviço militar no Morro Branco, em frente ao Monte Cara, onde sentiu na pele
o racismo dos militares portugueses, tendo incitado os soldados cabo-verdianos
a participarem num levantamento de rancho, negando comer aquela cachupa mal cuchida, enquanto que os portugueses
comiam do Restaurante Chave d’Ouro.
Sabia que a Cabo Verde não fora aplicado o Estatuto do Indigenato, mas quando o cabo-verdiano, perseguido pelas fomes e secas, era obrigado a emigrar para São Tomé e Angola, onde recebia o mesmo tratamento que os indígenas, o que fora sempre denunciado pelos músicos e poetas cabo-verdianos. Aliás, o poeta Ovídio Martins, que fora colaborador do jornal Nós Vida em Roterdão, na Holanda, dizia que enquanto houvesse um cabo-verdiano nas roças de São Tomé, Cabo Verde nunca seria um país livre. Sentiu-se colonizado, inferiorizado, sem direitos nenhuns na própria terra e, se não tivesse encontrado trabalho logo após a sua saída da tropa na Companhia Wilson e uma mulher linda e trabalhadeira, teria fugido logo em qualquer barco que passasse pelo Porto Grande.
Sabia que a Cabo Verde não fora aplicado o Estatuto do Indigenato, mas quando o cabo-verdiano, perseguido pelas fomes e secas, era obrigado a emigrar para São Tomé e Angola, onde recebia o mesmo tratamento que os indígenas, o que fora sempre denunciado pelos músicos e poetas cabo-verdianos. Aliás, o poeta Ovídio Martins, que fora colaborador do jornal Nós Vida em Roterdão, na Holanda, dizia que enquanto houvesse um cabo-verdiano nas roças de São Tomé, Cabo Verde nunca seria um país livre. Sentiu-se colonizado, inferiorizado, sem direitos nenhuns na própria terra e, se não tivesse encontrado trabalho logo após a sua saída da tropa na Companhia Wilson e uma mulher linda e trabalhadeira, teria fugido logo em qualquer barco que passasse pelo Porto Grande.
Após a quarta classe passou a frequentar a Biblioteca
da Câmara Municipal, onde entrou em contato com os autores do nordeste brasileiro.
Dizia o autor dos Flagelados do Vento Leste, o Mindelense Manuel Lopes, que “as
personagens dos romances nordestinos não eram desconhecidas em Cabo Verde
(Manuel Lopes – Reflexões sobre a literatura cabo-verdiana).” Na
companhia Wilson, começou a ler os livros do Racionalismo Cristão e o Reader’s
Digest, importados por Nhô Toi Pombinha de que se fez assinante.
Tinha
familiares no Brasil que escreviam de tempos em tempos e que prometiam ir de
férias, mas que nunca voltaram. Em Santos, principalmente, vivia uma boa
colónia cabo-verdiana, que se integrou ôde tal maneira que já nem falavam o
crioulo de cabo Verde. Segundo os mais velhos, as condições de vida não eram
tão diferentes das de Cabo Verde e, para suprir as dificuldades, faziam uma
integração forçada. Mas o cabo-verdiano continuava ligado a Cabo Verde,
principalmente no plano cultural, cultivando as suas mornas e coladeras e
estudando também os seus escritores.
As
relações entre Cabo Verde e o Brasil vinham de longe. O padre Antônio Vieira,
mulato e filho de uma cabo-verdiana, visitou por duas vezes a Cidade Velha
(Ribeira Grande), onde
pregou na sua Catedral (1650 e 1652), tendo afirmado ter
encontrado ali, «cônegos negros da cor de
azeviche, mas tão cultos e morigerados, tão bons músicos, que fariam inveja nas
catedrais do Reino». Na Independência do Brasil, alguns cabo-verdianos
queriam mesmo uma anexação de Cabo Verde ao Brasil. A ideia não conseguiu
vingar pelo fato da Independência do Brasil não ter sido acompanhada pela
abolição da escravatura. Mas a emigração nunca parou e, durante as fomes de
1911, regressou a Cabo Verde um cabo-verdiano num barco para trazer mantimentos
às populações famintas nas ilhas. Tratava-se de Manito Burgo, que residia em
Santos, um kardecista que esteve na base do Racionalismo Cristão, fundado em
Santos em 1910, e que aproveitava da sua estadia para implantar o Racionalismo
Cristão em Cabo Verde. Em 2011, os racionalistas cristãos de São Vicente
comemoraram o centenário do regresso de Manito Burgo a São Vicente. Homem de
uma vasta cultura publicou
em São Paulo o livro Música e Músicos, de imediato completamente esgotado e que tem muita procura em Cabo Verde e nas comunidades cabo-verdianas da diáspora que, aliás, pedem a sua reedição. Havia quadros cabo-verdianos em São Paulo que apoiavam a luta pela democracia e Independência de Cabo Verde. E no nordeste brasileiro, no Natal, vivia o romancista Luís Romano, autor do romance Famintos, que denunciava as fomes dos anos quarenta em Cabo Verde. Homem dotado de uma grande vivência no litoral africano (Dakar, Mauritânia e Marrocos), partiu para o Brasil onde prosseguiu a sua carreira literária com ensaios, entre os quais Cabo Verde- elo antropológico entre o Brasil e a África Mãe. Colaborou ainda em vários jornais do Brasil, de Portugal, de Cabo Verde, mas também e principalmente nos países da diáspora.
em São Paulo o livro Música e Músicos, de imediato completamente esgotado e que tem muita procura em Cabo Verde e nas comunidades cabo-verdianas da diáspora que, aliás, pedem a sua reedição. Havia quadros cabo-verdianos em São Paulo que apoiavam a luta pela democracia e Independência de Cabo Verde. E no nordeste brasileiro, no Natal, vivia o romancista Luís Romano, autor do romance Famintos, que denunciava as fomes dos anos quarenta em Cabo Verde. Homem dotado de uma grande vivência no litoral africano (Dakar, Mauritânia e Marrocos), partiu para o Brasil onde prosseguiu a sua carreira literária com ensaios, entre os quais Cabo Verde- elo antropológico entre o Brasil e a África Mãe. Colaborou ainda em vários jornais do Brasil, de Portugal, de Cabo Verde, mas também e principalmente nos países da diáspora.
Foi
Jaime Cortesão que chamou Cabo Verde «Arquipélago escala». Após a abolição do
comércio de escravos surgiu, em 1874, a Brasilian Submarine Telegraph
Company que amarrava o seu cabo submarino em São Vicente, estabelecendo a
ligação telegráfica entre a Europa e a América do Sul, ligando Lisboa a
Pernambuco, via Madeira. Esta estação telegráfica, segundo o escritor Manuel
Lopes, que ali trabalhava, chegou a manter mais de duzentos empregados
especializados, entre ingleses e locais.
Se
a literatura brasileira não estava em todos os lares devido à pobreza das
ilhas, o som e os ritmos brasileiros não faltavam. Há músicas brasileiras
cantadas em Cabo Verde como se fossem das ilhas, principalmente o baião do
nordeste. Pouca gente sabe que a música Perdão Emília, tocada no ritmo
de morna, chegou a Cabo Verde nos princípios dos anos cinquenta numa
interpretação do cantor brasileiro Gilberto Alves. Recentemente foi gravada em
Cabo Verde como morna de autor desconhecido. A morna balada Sodade,
universalmente conhecida graças à diva cabo-verdiana Cesária
Évora, tem a sua
influência no Brasil, cujo autor, Zeferino Soares, ali viveu largos anos. O
próprio Eugénio da Paula Tavares tinha muita admiração por Catulo da Paula
Cearense, autor da música Súplica Cearense, que, aliás, foi gravada na
Holanda pelo Conjunto A Voz de Cabo Verde, cujo cantor Djosinha era um
aficionado da música brasileira, sendo o clarinetista do grupo, Luís Morais,
um grande fã do clarinetista Pitanga. E não se pode ignorar a velha escola de
solistas de violão, iniciada por Luís Rendall que fez escola em Cabo Verde e de
quem os mais jovens, como Tazinho, Humbertona, Armando Tito, Vuca Pinheiro, Zé
Timas, Bau e Voginha têm sido verdadeiros continuadores.
Os
instrumentos musicais vinham do Brasil, via Porto Grande: o violão, os
instrumentos de percussão e, acima de tudo, o cavaquinho, chamado pequeno de
coração grande e que está presente em todas as noites cabo-verdianas,
instrumentos que passaram depois a serem fabricados em São Vicente. Os violões
de Nhô Jom Xalino, de Lela Precisosa e do mestre Batista, pai do grande solista
de cavaquinho Baú, que fabrica os próprios instrumentos de corda, tiveram um papel
importante na divulgação da música cabo-verdiana. Consta que foi Nhô Jaime
Brito, mindelense de sete costados, que morava no Alto Mira Mar, que comprou o
primeiro cavaquinho num barco brasileiro de passagem pela ilha e o introduziu
na música cabo-verdiana.
Ao
sair da tropa, Juquim de Nhá Bia de Rufino encontrou trabalho como torneiro na
companhia inglesa Wilson, e aprendeu muito como técnico de máquinas. Foi ele
que torneou uma peça necessária para fazer marchar um barco brasileiro que se
encontrava bloqueado no Porto Grande. O capitão do barco quis mesmo que ele
fosse clandestinamente no barco receando uma nova falha ao sair do Porto Grande
de São Vicente. Porém, Juquim de Nhá Bia inventou todas as desculpas para não
embarcar, pois se sentia feliz na sua terra e tinha uma namorada de nome Funha,
que não trocaria por nada deste mundo.
Conheceu a moça numa serenata na Rua de
Moeda, em casa de Nhô Jom Xalino, cujos filhos também eram grandes músicos.
Começou por acompanhá-la a sua casa em Fonte Francês, ainda cheia de coqueiros
e tamareiras que provocavam um medo terrível à noite com o barulho do vento. No
princípio não entrava em casa dela. Mas no dia em que disse a Funha que
procurava uma casa para morar, esta logo lhe propôs que viesse morar com ela,
desde que tivesse boas intenções.
Funha, mulher trabalhadeira,
levantava-se cedo e deixava tudo preparado, incluindo o almoço que Juquim
levava para o trabalho. Um ano depois, Funha dava à luz um par de gêmeos, um
rapaz e uma menina, o que a levou a deixar de trabalhar e também de cantar nas
serenatas e bailes populares. Mas o que ganhava Juquim dava-lhes para viver.
Aos sábados e domingos passeavam por Fernando Pau, Lameirão, Mato Inglês,
Ribeira de Julião, de onde traziam hortaliças para a casa. Mas quando vinha a
chuva lembrava-se do seu Santo Antão com os seus regadios, suas ribeiras
férteis, mas não tinha tempo para ir rever o lugar do seu nascimento.
Quando
menos esperava, nasceu o terceiro filho. As despesas aumentaram. Tiveram
primeiramente que mudar de casa. Depois do parto, Funha andou perturbada e foi
aconselhada a
passar pelo Centro Racionalista Cristão do Professor João Miranda. No princípio, tinha as suas dúvidas. Depois comprou livros e foi assistir às sessões e tornou-se militante da causa racionalista em São Vicente, onde os problemas de classe e de cor não existiam e que dava uma característica especial à ilha. Quando a Pide, a pedido do Padre Fernando, começou a perseguir os racionalistas cristãos, Juquim e Funha participavam nas sessões clandestinas com Jom d’Auta e Nhô Matias, em quase todos os cantos da ilha. Daí Juquim solidificou a sua veia nacionalista, pronto a lutar pela liberdade individual e pela Independência. Como dizia Nhô Balta, era a Pide que estava a formar a rede de independistas em Cabo Verde, o que servia a causa do PAIGC. E também reforçou a sua ligação com o Brasil.
passar pelo Centro Racionalista Cristão do Professor João Miranda. No princípio, tinha as suas dúvidas. Depois comprou livros e foi assistir às sessões e tornou-se militante da causa racionalista em São Vicente, onde os problemas de classe e de cor não existiam e que dava uma característica especial à ilha. Quando a Pide, a pedido do Padre Fernando, começou a perseguir os racionalistas cristãos, Juquim e Funha participavam nas sessões clandestinas com Jom d’Auta e Nhô Matias, em quase todos os cantos da ilha. Daí Juquim solidificou a sua veia nacionalista, pronto a lutar pela liberdade individual e pela Independência. Como dizia Nhô Balta, era a Pide que estava a formar a rede de independistas em Cabo Verde, o que servia a causa do PAIGC. E também reforçou a sua ligação com o Brasil.
Aconteceu, que nos fins dos anos cinquenta, um grupo de Mindelenses, habituados às
lides das viagens pelo Mundo, descobriram o porto de Roterdão, vítima da
Segunda Guerra Mundial, e que necessitava de marinheiros. Reativaram a
emigração cabo-verdiana, suspensa desde o ano de 1924 pelos Estados Unidos,
agora para a Holanda, no momento em que Cabo Verde atravessava um ciclo de
secas e fomes e que a única solução portuguesa consistia em enviar os famintos
para as roças de São Tomé e Angola. Estes ficaram na história de Cabo Verde
como os apóstolos da emigração cabo-verdiana, os verdadeiros libertadores da
Pátria. Criaram hotéis para acolher os patrícios onde recebiam formação
marítima e eram depois colocados nos barcos que passavam por Roterdão. Em todas
as ilhas nasceram movimentos sociais para apoiar a emigração para Holanda.
Muitos hipotecavam os seus bens, mas havia também muitas pessoas que
financiavam essa emigração, certas de servirem também Cabo Verde.
Foi
a sua mulher, que possuía a sua casinha em Fonte Francês, que a hipotecou para
arranjar dinheiro para que Juquim emigrasse. Este juntou toda família e os
amigos para explicar a sua decisão de emigrar, pois se tratava de uma grande
oportunidade de progredir na vida. O encorajamento de todos levou-o a fazer
vários projetos de vida para regressar rico da Terra Longe. Foi à Foto Melo
fazer uma fotografia da família e prometeu trazer no regresso uma boa máquina
fotográfica para fotografar os amigos e familiares em todos os cantos da ilha.
A
viagem de barco durava cinco dias até Portugal e depois seguiam de comboio
passando pela Espanha, França e Bélgica. A viagem era diferente das viagens
para São Tomé e Príncipe, no porão dos barcos e em condições humilhantes, como
se fossem animais.
Chegado a Lisboa um pouco atordoado,
Juquim foi surpreendido por um embarque de soldados para a guerra na Guiné e em
Angola, as famílias chorando por temerem os ditos terroristas dos movimentos de
libertação. Mas o pior foi ter encontrado alguns militares cabo-verdianos que
também partiam para essa guerra, revoltados com a situação. Aliás, dois deles
vieram, mais tarde, a desertar do exército português e juntar-se a Amílcar
Cabral, o líder da luta de libertação.
No
caminho para Holanda pôde aperceber-se da miséria em que vivia o povo
português, pouco diferente do povo das colônias. E tanto sofriam do frio que
até se podia dizer que os africanos viviam tão injustiçados como os portugueses
do norte. Emigravam também clandestinamente para a França, passando dias e dias
a atravessar a Espanha, muitos deles sem saberem ler ou escrever uma carta.
Como era possível Portugal fazer a guerra em três frentes em África e ignorar o
sofrimento do seu próprio povo?
Juquim chegou à noite na Holanda e foi
diretamente ao Hotel Delta de Constantino de Nhô Matigim. Não havia cama para
toda a gente, mas um patrício ofereceu a sua dizendo: Se tu não te lembras de
mim, lembro-te que eu sou o João, afilhado da tua mãe. Fica com a minha cama. E
também com estes cinquenta guildens para o teu café e amanhã veremos. Não te
preocupes com o pagamento do hotel.
Nessa noite, Juquim dormiu que nem um
príncipe, depois de quase três dias de viagem de comboio, de pé e sem dormir.
Quando acordou de manhã e viu pela vidraça que o chão estava todo branco tremeu
de medo. Um patrício explicou-lhe que aquilo era neve e disse-lhe que não
saísse à rua. Horas depois, chegou o amigo todo contente, assobiando uma morna
antiga e que lhe ofereceu roupas de inverno. Depois o levou aos recônditos
crioulos de Roterdão para ver os amigos e informar-se da situação do emprego
nos barcos que debandavam Roterdão. Juquim descobriu a primeira casa de discos
de Cabo Verde na Holanda, os bares e lojas de patrícios, um Cabo Verde
diferente, solidário, onde todos estavam unidos para servirem as famílias e
Cabo Verde.
No primeiro dia que foi à Barraca
(Agência de Emprego), à procura de um barco, teve sorte. Havia conterrâneos que
procuravam bons barcos e meteram-no na lista dos candidatos, conseguindo assim
um lugar num navio que viajava para a África do Sul, Índia e Japão e que no
regresso passava pelo Brasil. Viu o mundo com novos olhos e compreendeu melhor
as causas da nossa emigração. Foi em seguida à loja de um conterrâneo que
vendia roupas e tomou a crédito o necessário para o trabalho. A este
conterrâneo pediu que enviasse todos os meses uma mensalidade de duzentos
florins à sua mulher em Cabo Verde, que ele pagaria no regresso da viagem. O
patrício pediu-lhe apenas uma declaração de dívida e tudo ficou selado.
Eram viagens de seis meses e somente
passava um mês em terra. Chegou a passar nas águas de Cabo Verde, mas nunca o
barco ali parou. Nunca se sentira tão triste ao ouvir o programa de mornas da
Rádio Barlavento, dedicado aos marinheiros cabo-verdianos nos oceanos do Mundo.
Viu que o cabo-verdiano, em patamares diferentes, era outro indivíduo, evoluía
socialmente e orgulhava-se da sua terra. Não estavam ali somente a correr atrás
de florins, mas também de valores morais e culturais. E pensavam que em poucos
anos poderiam transformar Cabo Verde em todos os domínios: investindo na
construção urbana, na criação das suas empresas e os filhos dos emigrantes, que
ficavam no país, poderiam ir estudar nos liceus e nas universidades no
estrangeiro. Era a emigração que iria também arrancar os seus irmãos das
plantações de café e cacau e pôr termo ao caminho de São Tomé.
Depois de três anos Juquim regressou a
Cabo Verde. Dessa vez fora de avião. Já possuía uma grande casa com quartos
para cada filho e sentiu-se orgulhoso de si mesmo como cabo-verdiano e também
da mulher, que sabia economizar o dinheiro que ele enviava mensalmente. E
trouxe a máquina fotográfica que agora não servia simplesmente para fazer
fotografias de amigos, mas também para testemunhar da situação política e econômica
de Cabo Verde. E no regresso à Holanda faria uma exposição de fotografias na
Associação e nos hotéis de cabo-verdianos. Tentou explicar a importância
política da fotografia, do seu papel de denúncias das ditaduras e propôs que a
Câmara Municipal e o Governo conservassem os arquivos da Foto Melo e de Nhô
Djunga Fotógrafo, pois nos permitiriam outra leitura da história de Cabo Verde.
Também sugeriu que os arquivos da revista Claridade fossem conservados
para a história.
Pensou em ficar em Cabo Verde, mas a
diferença salarial era enorme e, depois de três meses, voltou para a Holanda.
Além disso, já não suportava o ambiente pidesco que se fazia sentir nos
aeroportos e nas ruas, a ponto de não saber com quem dialogar. E então pensou
levar a mulher e os filhos para Fameck em França, onde ela tinha família,
podendo assim ir visitá-los sempre que não estivesse embarcado. Arranjou um
procurador, um amigo seu, e entregou-lhe a gestão da sua casa em Mindelo com a
condição de, caso houvesse alguém que quisesse alugar a casa, o dinheiro
deveria ser depositado na sua conta bancária de emigrante.
A
vinda da família para a França também tinha a ver com a educação dos filhos. Iriam
estudar num país culto, cujas colônias acederam à Independência sem utilizar a
violência. Era só ver o que os franceses deixaram no Senegal ao nível do
ensino liceal e universitário. O Senegal tinha desde os anos cinquenta uma grande universidade de direito e medicina, enquanto não havia nenhuma em Cabo Verde. Possuía intelectuais brilhantes ligados à revista Présence Africaine em Paris e que dignificavam a África em qualquer parte do Mundo. Assim os seus filhos iriam crescer num mundo diferente, onde a inteligência não tinha cor e em que qualquer cidadão era respeitado pelo seu saber.
ensino liceal e universitário. O Senegal tinha desde os anos cinquenta uma grande universidade de direito e medicina, enquanto não havia nenhuma em Cabo Verde. Possuía intelectuais brilhantes ligados à revista Présence Africaine em Paris e que dignificavam a África em qualquer parte do Mundo. Assim os seus filhos iriam crescer num mundo diferente, onde a inteligência não tinha cor e em que qualquer cidadão era respeitado pelo seu saber.
Os
anos passaram. Os filhos foram excelentes alunos e na altura da Independência
foi a Cabo Verde com a família para mostrar aos filhos o país das suas origens.
A primeira surpresa foi saber que a sua casa estava alugada e que não havia um
centavo na sua conta bancária! O seu procurador, seu compadre, deu todas as
desculpas para explicar a necessidade de ter tido de alugá-la e ter utilizado o
dinheiro das rendas. O cliente negou sair da casa e Juquim e família tiveram
que ir para um hotel de um emigrante que conhecia da Holanda, pois Juquim não
estava disposto a pagar o preço que exigia o advogado que não lhe dava nenhuma
garantia.
Os
filhos gostaram de visitar o país, mas não puderam passar mais de um mês.
Vieram frustrados, visto não haver leis que protegessem os interesses dos
emigrantes que tanto se sacrificavam por Cabo Verde. E o mais grave era o
fato dos emigrantes serem perseguidos devido às suas opiniões sobre o destino
de Cabo Verde, que tanto contribuíram.
Regressaram
de novo à França, onde tinham casa posta e Juquim preparou-se para retomar o
ciclo do mar. Telefonava diariamente para a companhia a informar-se sobre a
data do embarque, mas respondiam-lhe que os barcos estavam parados. Era a crise
da marinha mercante holandesa de 1975. As grandes companhias despediam os
marinheiros mediante uma indenização. Havia o problema da documentação que era
mais inquietante para os emigrantes cabo-verdianos da Holanda. As Embaixadas de
Portugal receberam ordens do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares,
para não renovarem os documentos dos cabo-verdianos. Houve várias reuniões de
emigrantes que viam nisso uma vingança grave e humilhante da Nação Portuguesa.
Porém o Governo do Cabo Verde independente, cujo país dependia da emigração
para a Holanda, não saiu em defesa dos seus emigrantes. Pelo contrário, passou
a ter atitudes que em nada diferenciava das do tempo colonial. E muitos
cabo-verdianos foram expulsos da Holanda por não possuírem documentos, sendo
que muitos regressaram sem nada a Cabo Verde e outros foram morrer na Avenida
de São Bento em Lisboa numa grande miséria.
A maior companhia Holandesa, a Nedlloyd,
indenizou os seus trabalhadores que puderam inscrever-se nos serviços sociais,
recebendo mensalmente uma ajuda do Estado Holandês. Juquim foi à Holanda
receber a sua indenização e inscrever-se nos serviços sociais. Tentou ainda
embarcar num costeiro ou num barco grego, mas não gostou das condições. O mar
já não era para ele. Tomou a indenização e regressou à França, onde tinha bons
amigos e participava na vida associativa e desportiva, para além de ficar ao
lado da Funha e dos filhos.
Mas o problema da sua casa perseguia-o
constantemente. Jurara que não voltaria a Cabo Verde enquanto a sua casa não
estivesse desocupada. Em França visitava com a mulher o Luxemburgo e ia a Paris
e Marselha ver os patrícios. Continuava a receber livros e revistas do Brasil,
sem contar os discos que obteve durante as viagens para a América Latina e em
especial o Brasil.
A
pensão de reforma da Holanda não era muita, mas dava para viver em Cabo Verde.
Esperou até se cansar dessa situação e acabou por decidir de contratar um jovem
advogado a quem pagou um balúrdio para que conseguisse recuperar a casa. Porém
o inquilino, para além de não ter pagado as rendas, pedia uma indenização para
deixar a casa. Abuso!!!
Os filhos tinham terminado os estudos.
Empregaram-se e já tinham as próprias casas. Juquim passou o inverno quase em
casa e acabou por tomar uma decisão. Se no prazo de seis meses não recuperasse
a sua casa iria para o Brasil onde tinha
muitos amigos em Santos e onde podia
continuar a praticar livremente o seu Racionalismo Cristão.
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Avisou Funha da sua decisão e esta
concordou. Seis meses depois, os filhos levaram-nos ao Luxemburgo para tomarem
um voo direto para São Paulo, indo depois fixar residência no porto de Santos,
que bem conhecia das suas viagens. Entretanto, os filhos iam visitá-los no
Brasil, enquanto preparavam para regressar definitivamente a Cabo Verde,
levando as suas estórias e sacrifícios dos emigrantes cabo-verdianos dispersos
pelo o Mundo.
O sonho do Brasil de Juquim de Nhá Bia
de Rufino
Por Luiz Silva