O escritor Juvenal Cabral nasceu em Cabo Verde, foi ainda criança para Portugal, regressou depois à sua terra natal, onde frequentou o Seminário-Liceu de S. Nicolau e aos 22 anos embarcou para a Guiné, onde fez um périplo entre Bolama e Bafatá. Mais tarde, regressou a Cabo Verde onde se revelou muito activo na defesa dos interesses cabo-verdianos.
O Instituto da Biblioteca Nacional, de Cabo Verde, editou em 2002 as suas impressivas “Memórias e Reflexões”, inicialmente publicado em 1947, na Cidade da Praia. Falando da Guiné, Juvenal Cabral mostra como procurou servir a nação portuguesa e, diz ele, “transformar em cidadãos prestáveis puros gentios da tribo” e mostrar a sua admiração pelos encantos naturais deste coração da Senegâmbia, recordando até a peregrina formosura de uma adolescente fula.
Apresenta-se como um simples recruta entre os escritores que, garbosamente, enfileiram na ala dos profissionais da pena.
São memórias e reflexões onde ele nos fala de Rufina Lopes Cabral, que pertencia a uma família de lavradores da Ribeira do Engenho, na ilha de Santiago. Uma senhora rica e sua madrinha, D. Simoa dos Reis Borges Correia, mandou-a estudar em S. Tiago de Cassurães, perto de Mangualde, tinha ele oito anos. Recorda mestres e amizades feitas no seminário de Viseu.
Nostálgico, diz que passou aqui os melhores anos da sua vida. Descreve Viseu como a rainha da Beira. De regresso à ilha de Santiago, vai para o Seminário de S. Nicolau, a experiência corre mal.
Em Abril de 1911, segue para a Guiné, com destino a Bolama. Transforma-se num funcionário público, amanuense da Câmara com um ordenado de 15 000 Reis. Aqui esteve 45 dias e depois passou para a Fazenda, colocado como aspirante provisório. Outra experiência que não correu lá muito bem. Seguiu para alfândega. É então que Juvenal Cabral se tornou professor primário.
Foi nomeado professor da Escola de Cacine em 1913. Ele escreve: “Cacine, a circunscrição civil ao tempo menos movimentada, não tinha, como nunca teve, fauna escolar apreciável. Dedicando-me, pois, ao ensino da meia dúzia de alunos que compunham a frequência, não deixava de ocupar-me no cultivo de um quintal, cuja produção – mandioca e batata-doce – constituía precioso reforço à minguada verba do meu vencimento oficial.
Monótona, aborrecida por vezes, era a vida em Cacine. Se contássemos – administrador, amanuense, telegrafista, chefe do posto aduaneiro, professor, enfermeiro e um comerciante – teríamos concluído o recenseamento da população que, com a reduzida família, habitava as cinco existentes na sede da circunscrição.
A presença do Capitão Teixeira Pinto, que ali fora, a fim de meter na ordem uns chefes desobedientes, foi o acontecimento mais notável que se verificou em Cacine, durante a minha permanência ali como funcionário”.
Foi depois transferido para Buba, antigo presídio, que ele descreve assim: “O que resta da sua antiga magnificência não é hoje mais do que a carcaça de um velho gigante que, nos primeiros séculos da colonização portuguesa, proporcionou riqueza e renome a todos os obreiros do seu desenvolvimento e grandeza.
A nova escola que eu ia dirigir não tinha, mau grado, frequência superior à da que eu acabava de deixar. À excepção de quatro ou cinco civilizados, apenas dois gentios, filhos de régulos, se matricularam. Do facto, nasceu, arreigando-se, a minha convicção de que uma escola entre gentios – excepção feita de Missões devidamente organizadas – somente poderia produzir frutos apreciáveis, se a obrigatoriedade de ensino, assegurada por um meio de severas sanções, fosse uma realidade da Guiné”.
Descreve alguns episódios picarescos de dois alunos filhos dos régulos de Forreá e do Corubal. A seguir é colocado na escola de Bambadinca e mais tarde em Bafatá, onde vai nascer Amílcar Cabral.
Juvenal Cabral, depois desta experiência como professor na Guiné, como se disse, regressa a Cabo Verde. É uma experiência de grande importância, mas o que escreveu e como participou na vida cívica e literária não cabe neste blogue. Leopoldo Amado já tinha chamado a atenção para o vulto cultural que foi Juvenal Cabral, cabo-verdiano fervoroso, que deixou este testemunho, como ele escreveu, a enaltecer a pátria portuguesa.
O pai de Amílcar Cabral é uma figura típica do intelectual cabo-verdiano que estudou em Portugal, que se motivou pelas letras pátrias e que se lançou, no espírito do tempo, na defesa pública dos interesses da população cabo-verdiana, entre os anos 30 e 50.
O seu livro “Memórias e Reflexões” é um depoimento do maior interesse para conhecer a têmpera de um homem culto que enaltecia a pátria portuguesa como nação colonizadora e que simultaneamente assumia a sua identidade africana e denunciava, dentro dos limites que o salazarismo consentia, os infortúnios desses ilhéus açoitados pela fome.
Já se escreveu como ele apareceu na Guiné, um quase adolescente, se atirou ao trabalho no funcionalismo em Bolama e depois como professor primário, percorrendo Cacine, Buba, Bambadinca e Bafatá.
É aqui que vai nascer Amílcar Cabral. Desse período, Juvenal Cabral oferece-nos alguns dos seus melhores textos antes de regressar à ilha de Santiago. Oiçamo-lo a descrever a vila de Bafatá: “Centro comercial de primeira ordem, ergue-se em anfiteatro, risonha e próspera, no ponto em que o pequeno rio Colufi junta as suas águas às do volumoso Geba, cujas sinuosas margens foram testemunhas de interessantes acontecimentos históricos.
Foi nas margens do imponente rio Geba que Infali Soncó mandou colocar arame farpado, na tentativa de impedir a passagem de embarcações e cortar todas as comunicações comerciais entre Bissau e Bafatá. Foi nas pitorescas margens desse caudaloso rio que filhos de Geba se reuniram em 1852 para planearem a revolta por meio da qual manifestaram o seu descontentamento e o seu protesto contra os prejuízos resultantes do privilégio concedido a Nicolau Monteiro de Macedo de, em exclusivo, explorar todo o comércio e navegação do rio Corubal.
Foi ainda naquelas aprazíveis margens, à sombra de frondosas árvores, que a Fidalga de Fá – negra biafada, sedenta de civilização e doidamente apaixonada – se lançou nos braços do cabo-verdiano José Valério com quem, num idílio verdadeiramente rústico, celebrou o seu romance de namoro, cujo interessante epílogo foi a cedência aos portugueses de todo o território de Fá!”
A admiração de Juvenal Cabral pelo administrador Calvet de Magalhães era quase ilimitada. Exalta-o nas suas memórias como trabalhador incasável, homem de sociedade e acção que sobrepunha o interesse do serviço público ao seu próprio bem-estar. Calvet lançou-se em obras de fomento como a construção da ponte sobre o rio Colufi, e depois o mercado em estilo árabe, ao gosto dos muçulmanos. Juvenal Cabral confessa que Bafatá foi uma verdadeira escola para ele. Era professor oficial e subdelegado do Procurador da República.
Recorda ainda outros administradores como Alberto Pimentel e mesmo João Barreto, autor da primeira história de Guiné. Depois espraia-se em histórias da sua vivência. É o caso de um homem que teria sido assassinado para as bandas de Selho, hoje em território do Casamansa. O administrador Saavedra Temes dirigiu-se ao local acompanhado por Juvenal, o chefe de posto aduaneiro, um amanuense e um escrivão foram de cavalo e seguiu também a filha de um régulo que vivia com o administrador.
Lá foram à frente numa grande comitiva, com muitos fulas a pé, passaram por Contubo-El até chegarem a Sama Irondim. Ele escreve: não me cansei de admirar a paradisíaca beleza de alguns pontos do território da Guiné, onde jamais entrou uma enxada de lavrador para explorar, pela agricultura, as riquezas que o seu solo abençoado promete.
Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise”. A chegada a Sama Irondim foi uma verdadeira apoteose.
O cozinheiro levado de Bafatá preparou uma canja deliciosa. Bebido o primeiro garrafão de cinco litros, a comitiva mostrou-se ruidosa e festiva, com algumas imprecações de permeio, com os fulas a escutar tudo em silêncio. Depois o régulo pediu licença para fazer a sua festa, começou um batuque infernal.
Seguiram-se alguns episódios brejeiros, como o súbito desaparecimento do administrador na companhia da filha do régulo. No dia seguinte, procedeu-se à identificação do corpo e o administrador mandou enterrar o cadáver.
O relato de uma batucada é feito com todo o fulgor: “Chegam os homens do tambor e, atrás deles, o dançarino, rapaz negro mas de formas correctas e gentis. Vem quase completamente nu mas no pescoço e nos braços ostenta argolas de metal; nos tornozelos, além de argolas, qualquer coisa de madeira cujo som, semelhando castanholas, nitidamente sobressai, a cada passo da dança, a cada passada do dançarino.
Centenas de raparigas formam uma espécie de circunferência, cujo centro é o palco, onde o esbelto mancebo, num ritmo que seduz, numa agilidade que assombra, vai conquistar ovações estrondosas da plateia… ao matraquear ensurdecedor do tambor, das tábuas e das palmas, o dançarino, sobre quem incidem todos os olhares, salta de um lado para o outro, dá voltas ao recinto e baila sapateando com rapidez e perfeição… entretanto, um grupo de raparigas, num gesto que não pode dizer-se selvagem, porque foi realmente sublime e encantador, aproximam-se do seu Adónis, rodeiam-no como a um ídolo e ao mesmo tempo que dão palmas entoam uma canção, um hino de mística harmonia.
Arte indígena? – Arte primitiva? Arte oriunda dos primeiros habitantes do Egipto? – Da Arábia? – Do Industão? Eu não sei…”. Esta colectânea de memórias termina com uma exaltação dos heróis da Guiné, onde aparecem nomes como Teixeira Pinto e Júdice Bicker.
As recordações cabo-verdianas são igualmente palpitantes, fazem hoje o deleite de qualquer etnógrafo ou etnólogo. Como nos parecem igualmente tocantes todos os seus textos sobre as crises e as fomes e os seus apelos para que o povo flagelado visse mitigado todo o sofrimento.
Também por isso se compreende o orgulho dos cabo-verdianos que reeditaram Juvenal Cabral para o mostrar como exemplo às gerações mais jovens, exibindo textos com importantes informações socioculturais e políticas que têm de ser lidas à luz do contexto em que foram formuladas..
Juvenal Cabral, o pai de Amílcar Cabral
por Mário Beja Santos
Considerações do autor
Li Juvenal Cabral com imensa surpresa.
As autoridades de Cabo Verde dizem estar a prestar homenagem ao pai daquele que foi o fundador de duas nacionalidades.
Lendo esta colectânea de memórias, ficamos com o quadro do intelectual cabo-verdiano do seu tempo, um “civilizado” que se orgulhava de Cabo Verde e Portugal. Mário Beja Santos
Fonte:
http:// blogueforanadaevaotres blogspot com/2010/10/guine-6374-p7073-notas-de-leitura-153.html
O Instituto da Biblioteca Nacional, de Cabo Verde, editou em 2002 as suas impressivas “Memórias e Reflexões”, inicialmente publicado em 1947, na Cidade da Praia. Falando da Guiné, Juvenal Cabral mostra como procurou servir a nação portuguesa e, diz ele, “transformar em cidadãos prestáveis puros gentios da tribo” e mostrar a sua admiração pelos encantos naturais deste coração da Senegâmbia, recordando até a peregrina formosura de uma adolescente fula.
Apresenta-se como um simples recruta entre os escritores que, garbosamente, enfileiram na ala dos profissionais da pena.
São memórias e reflexões onde ele nos fala de Rufina Lopes Cabral, que pertencia a uma família de lavradores da Ribeira do Engenho, na ilha de Santiago. Uma senhora rica e sua madrinha, D. Simoa dos Reis Borges Correia, mandou-a estudar em S. Tiago de Cassurães, perto de Mangualde, tinha ele oito anos. Recorda mestres e amizades feitas no seminário de Viseu.
Nostálgico, diz que passou aqui os melhores anos da sua vida. Descreve Viseu como a rainha da Beira. De regresso à ilha de Santiago, vai para o Seminário de S. Nicolau, a experiência corre mal.
Em Abril de 1911, segue para a Guiné, com destino a Bolama. Transforma-se num funcionário público, amanuense da Câmara com um ordenado de 15 000 Reis. Aqui esteve 45 dias e depois passou para a Fazenda, colocado como aspirante provisório. Outra experiência que não correu lá muito bem. Seguiu para alfândega. É então que Juvenal Cabral se tornou professor primário.
Foi nomeado professor da Escola de Cacine em 1913. Ele escreve: “Cacine, a circunscrição civil ao tempo menos movimentada, não tinha, como nunca teve, fauna escolar apreciável. Dedicando-me, pois, ao ensino da meia dúzia de alunos que compunham a frequência, não deixava de ocupar-me no cultivo de um quintal, cuja produção – mandioca e batata-doce – constituía precioso reforço à minguada verba do meu vencimento oficial.
Monótona, aborrecida por vezes, era a vida em Cacine. Se contássemos – administrador, amanuense, telegrafista, chefe do posto aduaneiro, professor, enfermeiro e um comerciante – teríamos concluído o recenseamento da população que, com a reduzida família, habitava as cinco existentes na sede da circunscrição.
A presença do Capitão Teixeira Pinto, que ali fora, a fim de meter na ordem uns chefes desobedientes, foi o acontecimento mais notável que se verificou em Cacine, durante a minha permanência ali como funcionário”.
Foi depois transferido para Buba, antigo presídio, que ele descreve assim: “O que resta da sua antiga magnificência não é hoje mais do que a carcaça de um velho gigante que, nos primeiros séculos da colonização portuguesa, proporcionou riqueza e renome a todos os obreiros do seu desenvolvimento e grandeza.
A nova escola que eu ia dirigir não tinha, mau grado, frequência superior à da que eu acabava de deixar. À excepção de quatro ou cinco civilizados, apenas dois gentios, filhos de régulos, se matricularam. Do facto, nasceu, arreigando-se, a minha convicção de que uma escola entre gentios – excepção feita de Missões devidamente organizadas – somente poderia produzir frutos apreciáveis, se a obrigatoriedade de ensino, assegurada por um meio de severas sanções, fosse uma realidade da Guiné”.
Descreve alguns episódios picarescos de dois alunos filhos dos régulos de Forreá e do Corubal. A seguir é colocado na escola de Bambadinca e mais tarde em Bafatá, onde vai nascer Amílcar Cabral.
Juvenal Cabral, depois desta experiência como professor na Guiné, como se disse, regressa a Cabo Verde. É uma experiência de grande importância, mas o que escreveu e como participou na vida cívica e literária não cabe neste blogue. Leopoldo Amado já tinha chamado a atenção para o vulto cultural que foi Juvenal Cabral, cabo-verdiano fervoroso, que deixou este testemunho, como ele escreveu, a enaltecer a pátria portuguesa.
O pai de Amílcar Cabral é uma figura típica do intelectual cabo-verdiano que estudou em Portugal, que se motivou pelas letras pátrias e que se lançou, no espírito do tempo, na defesa pública dos interesses da população cabo-verdiana, entre os anos 30 e 50.
O seu livro “Memórias e Reflexões” é um depoimento do maior interesse para conhecer a têmpera de um homem culto que enaltecia a pátria portuguesa como nação colonizadora e que simultaneamente assumia a sua identidade africana e denunciava, dentro dos limites que o salazarismo consentia, os infortúnios desses ilhéus açoitados pela fome.
Já se escreveu como ele apareceu na Guiné, um quase adolescente, se atirou ao trabalho no funcionalismo em Bolama e depois como professor primário, percorrendo Cacine, Buba, Bambadinca e Bafatá.
É aqui que vai nascer Amílcar Cabral. Desse período, Juvenal Cabral oferece-nos alguns dos seus melhores textos antes de regressar à ilha de Santiago. Oiçamo-lo a descrever a vila de Bafatá: “Centro comercial de primeira ordem, ergue-se em anfiteatro, risonha e próspera, no ponto em que o pequeno rio Colufi junta as suas águas às do volumoso Geba, cujas sinuosas margens foram testemunhas de interessantes acontecimentos históricos.
Foi nas margens do imponente rio Geba que Infali Soncó mandou colocar arame farpado, na tentativa de impedir a passagem de embarcações e cortar todas as comunicações comerciais entre Bissau e Bafatá. Foi nas pitorescas margens desse caudaloso rio que filhos de Geba se reuniram em 1852 para planearem a revolta por meio da qual manifestaram o seu descontentamento e o seu protesto contra os prejuízos resultantes do privilégio concedido a Nicolau Monteiro de Macedo de, em exclusivo, explorar todo o comércio e navegação do rio Corubal.
Foi ainda naquelas aprazíveis margens, à sombra de frondosas árvores, que a Fidalga de Fá – negra biafada, sedenta de civilização e doidamente apaixonada – se lançou nos braços do cabo-verdiano José Valério com quem, num idílio verdadeiramente rústico, celebrou o seu romance de namoro, cujo interessante epílogo foi a cedência aos portugueses de todo o território de Fá!”
A admiração de Juvenal Cabral pelo administrador Calvet de Magalhães era quase ilimitada. Exalta-o nas suas memórias como trabalhador incasável, homem de sociedade e acção que sobrepunha o interesse do serviço público ao seu próprio bem-estar. Calvet lançou-se em obras de fomento como a construção da ponte sobre o rio Colufi, e depois o mercado em estilo árabe, ao gosto dos muçulmanos. Juvenal Cabral confessa que Bafatá foi uma verdadeira escola para ele. Era professor oficial e subdelegado do Procurador da República.
Recorda ainda outros administradores como Alberto Pimentel e mesmo João Barreto, autor da primeira história de Guiné. Depois espraia-se em histórias da sua vivência. É o caso de um homem que teria sido assassinado para as bandas de Selho, hoje em território do Casamansa. O administrador Saavedra Temes dirigiu-se ao local acompanhado por Juvenal, o chefe de posto aduaneiro, um amanuense e um escrivão foram de cavalo e seguiu também a filha de um régulo que vivia com o administrador.
Lá foram à frente numa grande comitiva, com muitos fulas a pé, passaram por Contubo-El até chegarem a Sama Irondim. Ele escreve: não me cansei de admirar a paradisíaca beleza de alguns pontos do território da Guiné, onde jamais entrou uma enxada de lavrador para explorar, pela agricultura, as riquezas que o seu solo abençoado promete.
Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise”. A chegada a Sama Irondim foi uma verdadeira apoteose.
O cozinheiro levado de Bafatá preparou uma canja deliciosa. Bebido o primeiro garrafão de cinco litros, a comitiva mostrou-se ruidosa e festiva, com algumas imprecações de permeio, com os fulas a escutar tudo em silêncio. Depois o régulo pediu licença para fazer a sua festa, começou um batuque infernal.
Seguiram-se alguns episódios brejeiros, como o súbito desaparecimento do administrador na companhia da filha do régulo. No dia seguinte, procedeu-se à identificação do corpo e o administrador mandou enterrar o cadáver.
O relato de uma batucada é feito com todo o fulgor: “Chegam os homens do tambor e, atrás deles, o dançarino, rapaz negro mas de formas correctas e gentis. Vem quase completamente nu mas no pescoço e nos braços ostenta argolas de metal; nos tornozelos, além de argolas, qualquer coisa de madeira cujo som, semelhando castanholas, nitidamente sobressai, a cada passo da dança, a cada passada do dançarino.
Centenas de raparigas formam uma espécie de circunferência, cujo centro é o palco, onde o esbelto mancebo, num ritmo que seduz, numa agilidade que assombra, vai conquistar ovações estrondosas da plateia… ao matraquear ensurdecedor do tambor, das tábuas e das palmas, o dançarino, sobre quem incidem todos os olhares, salta de um lado para o outro, dá voltas ao recinto e baila sapateando com rapidez e perfeição… entretanto, um grupo de raparigas, num gesto que não pode dizer-se selvagem, porque foi realmente sublime e encantador, aproximam-se do seu Adónis, rodeiam-no como a um ídolo e ao mesmo tempo que dão palmas entoam uma canção, um hino de mística harmonia.
Arte indígena? – Arte primitiva? Arte oriunda dos primeiros habitantes do Egipto? – Da Arábia? – Do Industão? Eu não sei…”. Esta colectânea de memórias termina com uma exaltação dos heróis da Guiné, onde aparecem nomes como Teixeira Pinto e Júdice Bicker.
As recordações cabo-verdianas são igualmente palpitantes, fazem hoje o deleite de qualquer etnógrafo ou etnólogo. Como nos parecem igualmente tocantes todos os seus textos sobre as crises e as fomes e os seus apelos para que o povo flagelado visse mitigado todo o sofrimento.
Também por isso se compreende o orgulho dos cabo-verdianos que reeditaram Juvenal Cabral para o mostrar como exemplo às gerações mais jovens, exibindo textos com importantes informações socioculturais e políticas que têm de ser lidas à luz do contexto em que foram formuladas..
Juvenal Cabral, o pai de Amílcar Cabral
por Mário Beja Santos
Considerações do autor
Li Juvenal Cabral com imensa surpresa.
As autoridades de Cabo Verde dizem estar a prestar homenagem ao pai daquele que foi o fundador de duas nacionalidades.
Lendo esta colectânea de memórias, ficamos com o quadro do intelectual cabo-verdiano do seu tempo, um “civilizado” que se orgulhava de Cabo Verde e Portugal. Mário Beja Santos
Fonte:
http:// blogueforanadaevaotres blogspot com/2010/10/guine-6374-p7073-notas-de-leitura-153.html