A obra de Sérgio Frusoni, poeta caboverdiano que optou pela adoção do crioulo como língua literária, merece um estudo específico que, pelas dificuldades até então encontradas no trabalho com os textos na língua originária de Cabo Verde, ainda não foi feito.
Filho de Giuseppe Frusoni e Erminia Bonucci, Sérgio nasce no Mindelo, S. Vicente, a 10-08-1901, e morre em Lisboa, em 1975. Autor de vários contos em crioulo divulgados na Rádio Barlavento, notabiliza-se como poeta crioulo, mas apresenta a maioria dos poemas em duas versões, em língua crioula e em língua portuguesa, o que dá à recolha de sua produção um importante status quanto aos estudos literários.
Mesquitela Lima, que faz um estudo antropológico da obra de Frusoni, para nossa felicidade, recolheu boa parte dos poemas soltos em pedaços de papel que o poeta eventualmente conservava e, na maioria das vezes, perdia (LIMA 1992).
Assim, um corpus significativo de produção bilingüe1 de Sérgio Frusoni pode hoje ser examinado pelo pesquisador das áreas de Língua e Literatura, e nossa intervenção se dará neste segundo nível.
Enquanto conjunto de obra, a poética de Sérgio Frusoni acompanha a movimentação da Literatura Caboverdiana em torno de temas básicos à cultura como o apego à terra, a fome, o drama partir-ficar(também chamado terra-longismo). Mas acrescenta-lhes o sensualismo, o humor, o auto-biografismo e a constatação da situação da mulher na sociedade crioula.
Conferindo originalidade à obra de Frusoni percebemos a técnica do poema-retrato e o enfoque do quotidiano do povo crioulo, nas atividades simples do dia-a-dia.
Não admira, pois, que seus textos sejam expressos em crioulo, pois este é o veículo de comunicação da camada de população retratada, que não tinha acesso à língua portuguesa.
O crioulo constitui o elemento cultural que mais assume, fixa e expressa os valores culturais cabo-verdianos, a cultura cabo-verdiana enquanto comunidade de memória, com um sentimento de identidade que conjuga todo o Arquipélago e se estende à diáspora, gerando uma consciência de grupo bem demarcada.
Mesquitela Lima discute, com base nesses argumentos, o fato de ainda não ter sido outorgado ao crioulo o estatuto de língua e propõe que ele se denomine caboverdiano (ao invés de crioulo)2, para melhor caracterizar a sociedade que dá a conhecer.
Contudo, as polêmicas língua ou dialeto, crioulo ou caboverdiano, não nos ocuparão no momento. O que interessa é examinar os principais temas e processos que fazem da obra de Sérgio Frusoni um grande momento de Poesia, e de Poesia Caboverdiana.
Frusoni adota para seus textos o crioulo da Ilha de S. Vicente, e o nosso critério de adoção de uma forma escrita para o crioulo foi escolher o caminho mais fácil: conservar a grafia usada pelo poeta (como sabemos, a dificuldade de adotar uma forma escrita para o crioulo persiste, e sobre isto nos pode dar importante depoimento uma especialista, a Dra. Dulce Almada Duarte).
Um preâmbulo sobre alguns aspectos do crioulo de Cabo Verde para os que fazem os primeiros contactos com a Literatura Caboverdiana nos parece ainda necessário.
O fenômeno do bilingüismo não afeta globalmente a sociedade caboverdiana; nem todos os caboverdianos falam o português, muito mais utilizado na camada culta e rudimentarmente falado nas camadas populares.
Como o português nunca foi uma língua de domínio efetivo e global (foi muito mais uma língua de domínio administrativo-político), o crioulo continuou sendo o instrumento de comunicação oral privilegiado.
Além disto, não existe um só crioulo: a insularidade provocou formas dialetais ou linguagens regionais-insulares.
Frusoni é, pois, praticamente, um dos principais escritores que dão ao crioulo dignidade poética escrita, visto que no seu tempo a língua originária transmitia fundamentalmente mornas e coladeiras.
Influenciada pelo movimento da Claridade, que pensa a sociedade e a cultura como diferenciadas de um modelo colonial, a produção poética de Sérgio Frusoni recolhida por Mesquitela Lima compõe-se de 78 poemas, dos quais 15 sonetos (4 em português, 1 em inglês), escritos no crioulo de S. Vicente e acompanhados das respectivas traduções literárias em Língua Portuguesa, elaboradas pelo poeta.
A maior parte dos poemas não apresenta métrica ou rima, à exceção dos sonetos, que não examinaremos, pelo motivo acima apontado. Muitos dos poemas em crioulo foram utilizados como letras de morna. Seus temas básicos são, como já enunciamos, a fome, cenas do quotidiano de S. Vicente, o apego à terra, a emigração/evasão (por melhores condições de vida) e o regresso (para acabar na miséria), a problemática do mar (que não é a mesma em todas as ilhas).
Com o intuito de publicar em vida o livro Sanvicente crioulo, Frusoni, logo no poema "Presentaçom", assume sua identidade de caboverdiano e sanvicentino:
Quem mi ê? Um fidje de Sanvcênte.
Nascide, crióde, lá na ponta d' Praia.
Lá ondê que mar tâ sparajá debóxe de bôte,
moda barra dum saia.
Cs' ê que m' crê? Cantá nha terra!
Companhal na sê dor;
na nôbréza d' sê alma;
na pobréza d' sê vida!
Tradução:
Quem eu sou? Um filho de São Vicente.
nascido, criado, lá na Ponta da Praia.
Lá onde o mar se espreguiça debaixo dos botes,
como a barra duma saia.
O que eu quero? Cantar a minha terra!
Acompanhá-la na sua dor;
na nobreza da sua alma;
na pobreza da sua vida!
Esta é a proposta da obra. Os poemas autobiográficos "Nha coraçôm", "Mnine d' Sanvicente", "Pracinha", "Igreja D'Nossióra da Luz" continuam a delinear o retrato do poeta caboverdiano e de sua amada terra:
Nha coraçôm ê dum rapaz de vint'óne:
êl tâ rí, êl tâ chorá, consoante êl crê.
Se dá'l pa cantá, êl ê italióne,
pa quêl sangue quêl herdá quand' m'nascê:
Se dá'l pâ chorá, êl ê caboverdeóne
(Meu coração é dum rapaz de vinte anos:
ri, chora, consoante ele quer.
Se lhe dá para cantar, é italiano,
por aquele sangue que herdou quando nasci
Se lhe dá para chorar, é caboverdeano)
No poema "Mnine d'Sanvicente", Frusoni alude a suas saídas de Cabo Verde, ao tema da emigração-regresso, tão cantado pela Literatura do Arquipélago:
E j'a m' bá e já m' bem;
já m' torná bá e torná bem;
e alí'm lí, de pê na tchôm,
sem um vintem, sem um tstôm,
tâ crê torná bá...
ma pa torná bem...
(Já fui e já regressei;
já tornei a ir e tornei a regressar;
aqui estou, de pés no chão,
sem um vintém, sem um tostão,
a querer ir...
e tornar a regressar...)
A técnica do retrato condensado atinge líricos momentos no "flash" da Pracinha e da Igreja, cartões postais do Mindelo:
Igreja Igreja
Cambra Câmara
Rua da Luz Rua da Luz
Camim d' cimter Caminho do cemitério
Dalí ond'ê que m' tâ Daqui onde estou
m' ti t' oióbe, nha Igrejinha: vejo-te, minha Igrejinha
semp caiadinha d' brónc sempre caiadinha de branco
por dentre e por fóra, por dentro e por fora,
semp tâ figurá sempre a fazer figura,
embora bidjinha! embora velhinha!
Os costumes da terra (como a culinária), as fontes de sobrevivência, a seca e a chuva, a fome, a pobreza, terão expressão nos poemas "Rebêra", "Dia de féria", "Pâ quês pardalim", "Lembróme", "Infancia" e "Calôte , fidje de pôbréza, praga de nôs terra". O Porto Grande e a chuva são focalizados em paralelo no primeiro texto, correlacionando a abundância da água e da lama, tão necessárias ao cultivo, especialmente do milho, à abundância de barcos, tão importante para a economia da ilha:
M' câ sabê de bô, Não sei de ti,
nem de fórça dêsse láma nem da força dessa lama
que bo ti tâ carregá pa mar. que carregas para o mar.
Sô m' sabê cma vapor Só sei que os vapores
já pitá na baía, já apitaram na baía
cma aligria d'ága já rebentá na ar. e que a alegria da água
[á rebentou no ar...]
O milho assado, o rabo de porco e o feijão malaguetado, a cachupa e o pãozinho de milho (midje assóde, rabim de tchuc, fejón malaguetóde, catchupa, pômzinha de midje) inscrevem-se em alguns poemas enquanto pratos típicos da cultura caboverdiana
Em contraste, o sofrimento das crianças por causa da fome é retratado no poema "Infancia", num resgate da memória que persiste no poema "Lembróme".
Lembróme bô perfil: Lembra-me o teu perfil:
nocênte (...) inocente (...)
Ma que já tá trazê, Mas que já trazia
sargide na pêle serzida na pele
dôr ma sufrimênte, a dor e o sofrimento,
sina de nôs pôve... sina do nosso povo...
Fôme cá prêsta! Fôme ê bjôm! A fome não presta! Fome é
[um horror!]
Ma ants fôme do qui pêste ma guérra! Mas antes fome do que
[peste na guerra!]
Fôme ta minguóne, ta incudjine, A fome mingua-nos,
[encolhe-nos]
ma quem ta morrê fête menine, mas quem morre feito
[criança]
ta torná nascê fête menine, volta a nascer feito
[criança]
de lá de barriga de terra! de lá da barriga da terra
No poema "Pâ quês pardalim" Frusoni focaliza a mulher que, depois de desmaiar de fome, preocupa-se com um saco onde levava restos de cachupa e tocos de pão. Interpelada (em português) por que não comeu o farnel, ela diz:
E...e côsa que m' tá levá... E...e o que é que eu levava...
quês...pardalim àqueles...àqueles pardaizi-
[nhos]
-Pardais?
-Sim...
Quês...quês...dôs fidjim...de meu... àqueles...àqueles...dois filhinhos...meus...
A mulher, retratada ora na sua situação de abandono, em virtude da emigração do marido, ora no trabalho, ora em situações humorísticas, ou em sua sensualidade ("marmél de bô pêite/ ta pedí dentada d'ôme" - os marmelos do teu peito/a pedir dentada de homem), constitui um tema constante na obra de Sérgio Frusoni.
No texto "Quand um palavra sô tâ dzê tude côsa" Frusoni ridiculariza a mulher que regressa de rápida viagem a Lisboa com hábitos e até pronúncia diferentes. Uma só palavra condensará a crítica do povo a esse tipo de personagem: PACIÊNCIA!
Um dia nh'Augusta infermêra,
desembarcá tâ bem d'Lisboa: (desembarcou, vinha de Lisboa)
luva, cartêra,
cabel caracolóde
cara pintóde
ta pscá confundi parcença. (procurando confundir a figura)
Um mudjêr q'tava ta passá,
pará tâ spial,
cabá el sucdí cabeçá el dzê:
_Nh' Augusta, nh' armôm, PACIENÇA!.. (ah!, Meu irmão,
PACIÊNCIA!...)
No poema-sketch (técnica recorrente em sua obra) "Pai d'Fidje", o poeta mostra a mulher que reza para que o marido viciado ganhe no jogo, para que seus filhos não passem fome e ela não apanhe:
Spiá pa fidje, quem? Ele? Adéh!
importal lá s'ês t'andá sfarrapóde,
ô sem cmê! Alá'l sentóde
na jôgue, êss ê que'l crê!...
Scompôl? Brigá ma êl? Cónta d' nada!
Remêde ê rezá, cmáde!
E pdí Nossiôr pa fazel ganhá,
pamóde s'êl perdê, êl tíntchóme d'pancada...
A situação quase permanente da mulher só, em virtude do abandono ou emigração do marido, ou do afastamento do filho que parte para trabalhar longe é constantemente referida em poemas como "Sirvice de criada ca tá dá têmpe pa nada" e "A volta":
Sim, êl há d'voltá. Sim, há-de voltar.
E cs'ê qu' m há dzê? E que lhe direi?
Cma m'speral? Que o esperei?
Cma m' sofrê?... Que sofri?
S'el ca creditá? E se ele não acreditar?
Cs' ê qu' m há fazê? Que hei-de fazer?
M' há mostral fidje, Mostro-lhe a criança?
ô m' ha fcá calóde? ou fico calada?
E s' êl bem el stranhá casa; E se ele vem e estranha a
[casa?]
esse nha magréza; esta minha magreza
esse portôm abêrte, este portão aberto,
ma esse lume pagóde?... e este lume apagado?...
E s'stude bem dá cêrte? E se tudo vier a dar certo?
S'el cabá d' entrá se acabar de entrar
êl corrê pa mim?... e correr para mim?
M' há pô tâ tchorá, Hei-de chorar,
ô m' há pô tâ rí?... ou hei-de rir?...
Este belíssimo texto dá a medida da dramaticidade da emigração em terras caboverdianas. Os poemas "Contratóde" (que fala da partida do contratado, escravo do século vinte, por força do regime colonial), "Navì ta bá, navì ta bêm" (Navio que vai, navio que vem), "Na terra strónhe" (Em terra estranha),"Despedida", "Chamada de mar", "Diante de mar de sanvicente", "Volta d'imigrante antigo" enquadram-se no ciclo do terra-longismo (partida/regresso, o querer partir e ter de ficar/e vice-versa), tão bem teorizado por Manuel Ferreira (FERREIRA 1972).
Por outro lado, o chamado da terra, a caboverdianidade, a anti-evasão expressa veementemente por Ovídio Martins em Língua Portuguesa: Não vou para Pasárgada! reverbera em outros textos como "Nha terra", "Cabvêrde", "Pa diante é qu'ê camim":
Ma lì qu' m'nascê Mas aqui é que nasci
lì qu' m' criá! aqui é que me criei!
Êsse mar, êsse cêu, ma êsse tchôm, Este mar, este céu, este
[chão]
Lì qu'm'ha morrê! Aqui é que hei-de morrer!
Idêa d'imbarcá Ideia de embarcar
nunca passóme pâ cabéça (...) nunca me passou pela cabeça
Antes fcá pa lì tâ gozá dêsse mar Antes ficar por cá a
[gozar deste mar]
ma dêsse cêu. e deste céu.
Conhecendo e amando Cabo Verde, é fácil entender o sentimento de Sérgio Frusoni.
NOTAS
1. Considero a tradução literária dos textos para o português como um corpus poético à parte.
2. Ibidem, p. 26.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA, Manuel. 1972. O círculo do mar e o terra-longismo em Chiquinho de Baltasar Lopes. Colóquio-Letras 5.66-70.
LIMA, Mesquitela. 1992. A poética de Sérgio Frusoni: uma leitura antropológica. Lisboa/Praia: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa/Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco.
A POÉTICA CRIOULA DE SÉRGIO FRUSONI
Por Simone Caputo Gomes
Universidade Federal Fluminense
Fonte:
http: // vsites unb br/il/liv/public/frusoni.htm
Filho de Giuseppe Frusoni e Erminia Bonucci, Sérgio nasce no Mindelo, S. Vicente, a 10-08-1901, e morre em Lisboa, em 1975. Autor de vários contos em crioulo divulgados na Rádio Barlavento, notabiliza-se como poeta crioulo, mas apresenta a maioria dos poemas em duas versões, em língua crioula e em língua portuguesa, o que dá à recolha de sua produção um importante status quanto aos estudos literários.
Mesquitela Lima, que faz um estudo antropológico da obra de Frusoni, para nossa felicidade, recolheu boa parte dos poemas soltos em pedaços de papel que o poeta eventualmente conservava e, na maioria das vezes, perdia (LIMA 1992).
Assim, um corpus significativo de produção bilingüe1 de Sérgio Frusoni pode hoje ser examinado pelo pesquisador das áreas de Língua e Literatura, e nossa intervenção se dará neste segundo nível.
Enquanto conjunto de obra, a poética de Sérgio Frusoni acompanha a movimentação da Literatura Caboverdiana em torno de temas básicos à cultura como o apego à terra, a fome, o drama partir-ficar(também chamado terra-longismo). Mas acrescenta-lhes o sensualismo, o humor, o auto-biografismo e a constatação da situação da mulher na sociedade crioula.
Conferindo originalidade à obra de Frusoni percebemos a técnica do poema-retrato e o enfoque do quotidiano do povo crioulo, nas atividades simples do dia-a-dia.
Não admira, pois, que seus textos sejam expressos em crioulo, pois este é o veículo de comunicação da camada de população retratada, que não tinha acesso à língua portuguesa.
O crioulo constitui o elemento cultural que mais assume, fixa e expressa os valores culturais cabo-verdianos, a cultura cabo-verdiana enquanto comunidade de memória, com um sentimento de identidade que conjuga todo o Arquipélago e se estende à diáspora, gerando uma consciência de grupo bem demarcada.
Mesquitela Lima discute, com base nesses argumentos, o fato de ainda não ter sido outorgado ao crioulo o estatuto de língua e propõe que ele se denomine caboverdiano (ao invés de crioulo)2, para melhor caracterizar a sociedade que dá a conhecer.
Contudo, as polêmicas língua ou dialeto, crioulo ou caboverdiano, não nos ocuparão no momento. O que interessa é examinar os principais temas e processos que fazem da obra de Sérgio Frusoni um grande momento de Poesia, e de Poesia Caboverdiana.
Frusoni adota para seus textos o crioulo da Ilha de S. Vicente, e o nosso critério de adoção de uma forma escrita para o crioulo foi escolher o caminho mais fácil: conservar a grafia usada pelo poeta (como sabemos, a dificuldade de adotar uma forma escrita para o crioulo persiste, e sobre isto nos pode dar importante depoimento uma especialista, a Dra. Dulce Almada Duarte).
Um preâmbulo sobre alguns aspectos do crioulo de Cabo Verde para os que fazem os primeiros contactos com a Literatura Caboverdiana nos parece ainda necessário.
O fenômeno do bilingüismo não afeta globalmente a sociedade caboverdiana; nem todos os caboverdianos falam o português, muito mais utilizado na camada culta e rudimentarmente falado nas camadas populares.
Como o português nunca foi uma língua de domínio efetivo e global (foi muito mais uma língua de domínio administrativo-político), o crioulo continuou sendo o instrumento de comunicação oral privilegiado.
Além disto, não existe um só crioulo: a insularidade provocou formas dialetais ou linguagens regionais-insulares.
Frusoni é, pois, praticamente, um dos principais escritores que dão ao crioulo dignidade poética escrita, visto que no seu tempo a língua originária transmitia fundamentalmente mornas e coladeiras.
Influenciada pelo movimento da Claridade, que pensa a sociedade e a cultura como diferenciadas de um modelo colonial, a produção poética de Sérgio Frusoni recolhida por Mesquitela Lima compõe-se de 78 poemas, dos quais 15 sonetos (4 em português, 1 em inglês), escritos no crioulo de S. Vicente e acompanhados das respectivas traduções literárias em Língua Portuguesa, elaboradas pelo poeta.
A maior parte dos poemas não apresenta métrica ou rima, à exceção dos sonetos, que não examinaremos, pelo motivo acima apontado. Muitos dos poemas em crioulo foram utilizados como letras de morna. Seus temas básicos são, como já enunciamos, a fome, cenas do quotidiano de S. Vicente, o apego à terra, a emigração/evasão (por melhores condições de vida) e o regresso (para acabar na miséria), a problemática do mar (que não é a mesma em todas as ilhas).
Com o intuito de publicar em vida o livro Sanvicente crioulo, Frusoni, logo no poema "Presentaçom", assume sua identidade de caboverdiano e sanvicentino:
Quem mi ê? Um fidje de Sanvcênte.
Nascide, crióde, lá na ponta d' Praia.
Lá ondê que mar tâ sparajá debóxe de bôte,
moda barra dum saia.
Cs' ê que m' crê? Cantá nha terra!
Companhal na sê dor;
na nôbréza d' sê alma;
na pobréza d' sê vida!
Tradução:
Quem eu sou? Um filho de São Vicente.
nascido, criado, lá na Ponta da Praia.
Lá onde o mar se espreguiça debaixo dos botes,
como a barra duma saia.
O que eu quero? Cantar a minha terra!
Acompanhá-la na sua dor;
na nobreza da sua alma;
na pobreza da sua vida!
Esta é a proposta da obra. Os poemas autobiográficos "Nha coraçôm", "Mnine d' Sanvicente", "Pracinha", "Igreja D'Nossióra da Luz" continuam a delinear o retrato do poeta caboverdiano e de sua amada terra:
Nha coraçôm ê dum rapaz de vint'óne:
êl tâ rí, êl tâ chorá, consoante êl crê.
Se dá'l pa cantá, êl ê italióne,
pa quêl sangue quêl herdá quand' m'nascê:
Se dá'l pâ chorá, êl ê caboverdeóne
(Meu coração é dum rapaz de vinte anos:
ri, chora, consoante ele quer.
Se lhe dá para cantar, é italiano,
por aquele sangue que herdou quando nasci
Se lhe dá para chorar, é caboverdeano)
No poema "Mnine d'Sanvicente", Frusoni alude a suas saídas de Cabo Verde, ao tema da emigração-regresso, tão cantado pela Literatura do Arquipélago:
E j'a m' bá e já m' bem;
já m' torná bá e torná bem;
e alí'm lí, de pê na tchôm,
sem um vintem, sem um tstôm,
tâ crê torná bá...
ma pa torná bem...
(Já fui e já regressei;
já tornei a ir e tornei a regressar;
aqui estou, de pés no chão,
sem um vintém, sem um tostão,
a querer ir...
e tornar a regressar...)
A técnica do retrato condensado atinge líricos momentos no "flash" da Pracinha e da Igreja, cartões postais do Mindelo:
Igreja Igreja
Cambra Câmara
Rua da Luz Rua da Luz
Camim d' cimter Caminho do cemitério
Dalí ond'ê que m' tâ Daqui onde estou
m' ti t' oióbe, nha Igrejinha: vejo-te, minha Igrejinha
semp caiadinha d' brónc sempre caiadinha de branco
por dentre e por fóra, por dentro e por fora,
semp tâ figurá sempre a fazer figura,
embora bidjinha! embora velhinha!
Os costumes da terra (como a culinária), as fontes de sobrevivência, a seca e a chuva, a fome, a pobreza, terão expressão nos poemas "Rebêra", "Dia de féria", "Pâ quês pardalim", "Lembróme", "Infancia" e "Calôte , fidje de pôbréza, praga de nôs terra". O Porto Grande e a chuva são focalizados em paralelo no primeiro texto, correlacionando a abundância da água e da lama, tão necessárias ao cultivo, especialmente do milho, à abundância de barcos, tão importante para a economia da ilha:
M' câ sabê de bô, Não sei de ti,
nem de fórça dêsse láma nem da força dessa lama
que bo ti tâ carregá pa mar. que carregas para o mar.
Sô m' sabê cma vapor Só sei que os vapores
já pitá na baía, já apitaram na baía
cma aligria d'ága já rebentá na ar. e que a alegria da água
[á rebentou no ar...]
O milho assado, o rabo de porco e o feijão malaguetado, a cachupa e o pãozinho de milho (midje assóde, rabim de tchuc, fejón malaguetóde, catchupa, pômzinha de midje) inscrevem-se em alguns poemas enquanto pratos típicos da cultura caboverdiana
Em contraste, o sofrimento das crianças por causa da fome é retratado no poema "Infancia", num resgate da memória que persiste no poema "Lembróme".
Lembróme bô perfil: Lembra-me o teu perfil:
nocênte (...) inocente (...)
Ma que já tá trazê, Mas que já trazia
sargide na pêle serzida na pele
dôr ma sufrimênte, a dor e o sofrimento,
sina de nôs pôve... sina do nosso povo...
Fôme cá prêsta! Fôme ê bjôm! A fome não presta! Fome é
[um horror!]
Ma ants fôme do qui pêste ma guérra! Mas antes fome do que
[peste na guerra!]
Fôme ta minguóne, ta incudjine, A fome mingua-nos,
[encolhe-nos]
ma quem ta morrê fête menine, mas quem morre feito
[criança]
ta torná nascê fête menine, volta a nascer feito
[criança]
de lá de barriga de terra! de lá da barriga da terra
No poema "Pâ quês pardalim" Frusoni focaliza a mulher que, depois de desmaiar de fome, preocupa-se com um saco onde levava restos de cachupa e tocos de pão. Interpelada (em português) por que não comeu o farnel, ela diz:
E...e côsa que m' tá levá... E...e o que é que eu levava...
quês...pardalim àqueles...àqueles pardaizi-
[nhos]
-Pardais?
-Sim...
Quês...quês...dôs fidjim...de meu... àqueles...àqueles...dois filhinhos...meus...
A mulher, retratada ora na sua situação de abandono, em virtude da emigração do marido, ora no trabalho, ora em situações humorísticas, ou em sua sensualidade ("marmél de bô pêite/ ta pedí dentada d'ôme" - os marmelos do teu peito/a pedir dentada de homem), constitui um tema constante na obra de Sérgio Frusoni.
No texto "Quand um palavra sô tâ dzê tude côsa" Frusoni ridiculariza a mulher que regressa de rápida viagem a Lisboa com hábitos e até pronúncia diferentes. Uma só palavra condensará a crítica do povo a esse tipo de personagem: PACIÊNCIA!
Um dia nh'Augusta infermêra,
desembarcá tâ bem d'Lisboa: (desembarcou, vinha de Lisboa)
luva, cartêra,
cabel caracolóde
cara pintóde
ta pscá confundi parcença. (procurando confundir a figura)
Um mudjêr q'tava ta passá,
pará tâ spial,
cabá el sucdí cabeçá el dzê:
_Nh' Augusta, nh' armôm, PACIENÇA!.. (ah!, Meu irmão,
PACIÊNCIA!...)
No poema-sketch (técnica recorrente em sua obra) "Pai d'Fidje", o poeta mostra a mulher que reza para que o marido viciado ganhe no jogo, para que seus filhos não passem fome e ela não apanhe:
Spiá pa fidje, quem? Ele? Adéh!
importal lá s'ês t'andá sfarrapóde,
ô sem cmê! Alá'l sentóde
na jôgue, êss ê que'l crê!...
Scompôl? Brigá ma êl? Cónta d' nada!
Remêde ê rezá, cmáde!
E pdí Nossiôr pa fazel ganhá,
pamóde s'êl perdê, êl tíntchóme d'pancada...
A situação quase permanente da mulher só, em virtude do abandono ou emigração do marido, ou do afastamento do filho que parte para trabalhar longe é constantemente referida em poemas como "Sirvice de criada ca tá dá têmpe pa nada" e "A volta":
Sim, êl há d'voltá. Sim, há-de voltar.
E cs'ê qu' m há dzê? E que lhe direi?
Cma m'speral? Que o esperei?
Cma m' sofrê?... Que sofri?
S'el ca creditá? E se ele não acreditar?
Cs' ê qu' m há fazê? Que hei-de fazer?
M' há mostral fidje, Mostro-lhe a criança?
ô m' ha fcá calóde? ou fico calada?
E s' êl bem el stranhá casa; E se ele vem e estranha a
[casa?]
esse nha magréza; esta minha magreza
esse portôm abêrte, este portão aberto,
ma esse lume pagóde?... e este lume apagado?...
E s'stude bem dá cêrte? E se tudo vier a dar certo?
S'el cabá d' entrá se acabar de entrar
êl corrê pa mim?... e correr para mim?
M' há pô tâ tchorá, Hei-de chorar,
ô m' há pô tâ rí?... ou hei-de rir?...
Este belíssimo texto dá a medida da dramaticidade da emigração em terras caboverdianas. Os poemas "Contratóde" (que fala da partida do contratado, escravo do século vinte, por força do regime colonial), "Navì ta bá, navì ta bêm" (Navio que vai, navio que vem), "Na terra strónhe" (Em terra estranha),"Despedida", "Chamada de mar", "Diante de mar de sanvicente", "Volta d'imigrante antigo" enquadram-se no ciclo do terra-longismo (partida/regresso, o querer partir e ter de ficar/e vice-versa), tão bem teorizado por Manuel Ferreira (FERREIRA 1972).
Por outro lado, o chamado da terra, a caboverdianidade, a anti-evasão expressa veementemente por Ovídio Martins em Língua Portuguesa: Não vou para Pasárgada! reverbera em outros textos como "Nha terra", "Cabvêrde", "Pa diante é qu'ê camim":
Ma lì qu' m'nascê Mas aqui é que nasci
lì qu' m' criá! aqui é que me criei!
Êsse mar, êsse cêu, ma êsse tchôm, Este mar, este céu, este
[chão]
Lì qu'm'ha morrê! Aqui é que hei-de morrer!
Idêa d'imbarcá Ideia de embarcar
nunca passóme pâ cabéça (...) nunca me passou pela cabeça
Antes fcá pa lì tâ gozá dêsse mar Antes ficar por cá a
[gozar deste mar]
ma dêsse cêu. e deste céu.
Conhecendo e amando Cabo Verde, é fácil entender o sentimento de Sérgio Frusoni.
NOTAS
1. Considero a tradução literária dos textos para o português como um corpus poético à parte.
2. Ibidem, p. 26.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA, Manuel. 1972. O círculo do mar e o terra-longismo em Chiquinho de Baltasar Lopes. Colóquio-Letras 5.66-70.
LIMA, Mesquitela. 1992. A poética de Sérgio Frusoni: uma leitura antropológica. Lisboa/Praia: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa/Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco.
A POÉTICA CRIOULA DE SÉRGIO FRUSONI
Por Simone Caputo Gomes
Universidade Federal Fluminense
Fonte:
http: // vsites unb br/il/liv/public/frusoni.htm