O Mar!
Cercando prendendo as nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias, batendo a sua voz de encontro aos montes,
… deixando nos olhos dos que ficaram a nostalgia resignada de países distantes …
… Este convite de toda a hora que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir e ter que ficar! …
— Poema do Mar, Jorge Barbosa

A morna* e a emigração – Por Luiz Silva

A universalidade da morna está intimamente ligada à pluralidade dos seus temas e a dinâmica dos seus emigrantes no quadro dum convívio direto com outras culturas. Um grande número de mornas, escutadas religiosamente na diáspora, surgiu nas comunidades emigrantes.

Dança-se a morna crioula com passos lentos, numa paixão sonhadora, mas também com requebros das influências do tango e do samba e do jazz nas colônias crioulas nos Estados Unidos. Os arranjos musicais da morna refletem também essas influências: para um estudo profundo da morna, seria bom recorrer à tradição oral, ouvir as comunidades ou ainda seguir o modelo africano que se recorre aos «gritos» para escrever a própria história.

A morna e a emigração fizeram sempre juntas o mesmo percurso. Viajaram nos barcos baleeiros, nos porões dos barcos de passagem pelo Porto Grande ou no fundo dos porões a caminho de São Tomé e Príncipe e nos anos sessenta sonharam juntos ao abrir o caminho marítimo para Holanda, que libertou Cabo Verde das fomes cíclicas, que transformou social e culturalmente a sociedade, investindo na economia e na educação dos filhos e familiares, mas sempre com a esperança de voltar, criando condições para o pós-independência.

Ignorar a relação entre a morna e a emigração reduz a sua universalidade. O encontro da morna com o jazz, o tango e o samba foi benéfico. O próprio B. Leza dizia que o samba também é nosso: antes de chegar ao Brasil, parou aqui. Temos excelentes intérpretes do samba como Djosinha, Titina, Jorge Sousa, mas também grandes artistas do jazz como o saxofonista Joe Gonçalves ou ainda Horace Silver que tem continuidade musical em Carmen Sousa que continua a interpretar as suas obras, também há a cantora da família saonicolense Vicky Vieira entre outros, do mesmo modo vale lembrar, que temos mornas na Argentina com o balanço do tango.

A partir dos anos sessenta foi na Holanda que músicos e compositores de mornas como Frank Cavaquim, Luiz Morais, Morgadinho, Manuel d’Novas fizeram a sua evolução musical. Tanto Frank Cavaquinho como Manuel de Novas do contato com outras civilizações e culturas deu um novo engajamento à morna e a coladera.

Não se pode ignorar ainda a presença inglesa em São Vicente com uma elite muito culta tanto ao nível do desporto como das artes. Os ingleses fizeram uma colonização diferente dos portugueses: mandaram para as colônias pessoas de alta formação para justificar o direito a impor os seus valores culturais e civilizacionais. Para Rudyard Kipling, grande poeta anglófono, o dever da colonização é de levar aos outros os valores culturais que possuem o que não aconteceu com a colonização portuguesa. Os ingleses até possuíam o seu próprio cinema no Telegrafo e onde trabalhavam alguns músicos como Djack do Carmo, autor da musica Flor Formosa, gravadas pelo conjunto Voz de Cabo Verde ou ainda por Travadinha e que tem percorrido o mundo.

A existência de dois cinemas em Mindelo, a começar pelo Éden Park criado em 1922 e pertencente à família Marques da Silva e o cinema Park Mira Mar, a partir dos anos cinquenta, deram uma contribuição importante à cultura musical cabo-verdiana e acima de tudo mindelense. O cinema Éden Park esteve sempre disponível para outras atividades culturais e desportivas como saraus, concertos, teatro, boxe e outras atividades. Os filhos do Senhor César Marques, recentemente condecorado postumamente pelo Presidente da Republica, Jorge Fonseca (Lulu Marques, Djosa Marques e Tony Marques) se revelaram excelentes músicos. Fundaram o conjunto Ritmos Cabo-verdianos, associando Chico Serra, que mais tarde é recuperado pela Voz de Cabo Verde, Humbertona, Djack de Feliça e o vocalista Longino, tendo mesmo gravado um disco de 45 tours em Portugal e organizado algumas tournées pela Guiné-Bissau, Senegal e Portugal.

A formação da juventude mindelense muito se deve a estes dois cinemas que desaparecem com a independência devido à política centralista e ditatorial do partido único. O encerramento do Éden Park por falta de cuidados do Estado e do Município foi o prenúncio da morte da cultura em Mindelo. Hoje a cidade do Mindelo, devido à incúria da Câmara Municipal e do Governo, não possui um único cinema a testemunhar do seu passado claridoso.

É justo aqui assinalar a importância do professor José Reis, (Bolama 20/3/1895/ Mindelo 16/10/1966), na formação musical dos jovens mindelenses.  Filho de pais cabo-verdianos na Guiné e de origem boa-vistense chegou a São Vicente em 1929, depois de estudos em grandes conservatórias portuguesas e italianas. Começou por abrir uma escola de música na qual ensinava piano, violino, violoncelo, passando depois a exercer as funções de regente da Banda Municipal de Mindelo e, por fim, as de professor de Canto Coral no Liceu Gil Eanes e na Escola Técnica.

A maioria dos grandes músicos cabo-verdianos passaram pela sua escola tais como Jorge Monteiro (Jotamont), regente da Banda Municipal da Praia e depois em São Vicente, Manuel Santiago, Mané Raquinta, Pitrinha, o autor da morna Traiçoeira de Dakar e que emigrou para a Argentina, Morgadinho, Duca de Nhô Pitra, Luís Morais, Manuel Tidjena, Lourenço Lopes, Djosinha de Bernarda e outros. Chegou a dar concertos no Cinema Éden Park em que o público podia aplaudir a execução de obras de Bach, Bethoven, Chopin, Schubert, Haydn, Strauss e outros. Falando da morna num artigo intitulado Subsídios para o estudo da Morna, publicado post-morte, Félix Monteiro em Raízes n° 21, ele diz: 
ela nasceu do povo que a criou, banhando-o com as lagrimas das suas mortificações, resignações e sofrimentos, e também porque essas melodias não são outra coisa senão a exaltação ou o queixume eterno da alma cabo-verdiana, no que ela tem de mais comovente, de mais extravagante e de mais tumultuoso».

Para uma melhor justiça não se pode esquecer a Igreja Salesiana onde se formou o Paulino Vieira, um dos maiores músicos cabo-verdianos de todos os tempos, que dirigiu artistas como Bana, Cesária Évora, Titina, Dulce Matias, Celina Pereira, Dudu Araújo e formou uma nova geração de músicos como Tito Paris e outros.

Também se pode fazer referencia a contribuição no plano musical dos racionalistas cristãos vindos do Brasil: é o caso do emigrante Augusto Messias de Burgo um dos introdutores do Racionalismo Cristão em Cabo Verde, músico de alta qualidade, que publicou no ano de 1936, em São Paulo, Brasil, o livro Musica e Músicos, enquanto que o Cônego Teixeira, excomungado pela Papa, no ano de 1912 por se declarar espirita, foi professor de musica e defensor da língua materna cabo-verdiana. O compositor Manuel de Novas também se declarava racionalista cristão.

Apos a Independência surge uma nova geração de compositores do qual se destaca Manuel de Novas com novos temas que vão do amor à emigração pela qual pede um pouco de justiça: neto do grande compositor santantonense Jacinto Estrela autor de lindas mornas e que musicou textos de Antônio Caldeira Marques e Gabriel Mariano, inspirando-se do binômio «si tchuva bem morrê fogode//si tchuva ca bem morrê di fome».

Escolher dez mornas entre as centenas de mornas escritas pelos emigrantes e sobre a temática de emigração é um exercício muito difícil. Por uma questão de antiguidade e respeito pelos mais velhos, deixei de lado alguns compositores como o Teófilo Chantre o seu Cabo-verdiano Emigrante, o Jovino dos Santos e o seu álbum “Ex-ilhas”, o Eça Monteiro, o Betu e a celebre morna Manu, o Catchaço, que foi emigrante em França e modernizou o batuco de Santiago, o Norberto Tavares, o malogrado Djoia autor da morna Suplica, o Teófilo Chantre com o seu Cabo-verdiano Emigrante, o Jovino dos Santos com CD “Ex-ilhas”, exclusivamente dedicado à emigração em França, o cantor Eça Monteiro o violinista Júlio Thomas, os guitarristas José Thomas e irmão, o Cesar David, Damiao Mathias, John Euclides e outros.

As viagens mudam os homens e é o caso de Manuel de Novas, marítimo e emigrante na Holanda, que graças aos contatos com outros povos e civilizações, se distinguiu ao abordar os grandes temas da sociedade cabo-verdiana. A emigração foi e será sempre uma resposta politica e a morna a sua expressão maior. E é por isso que sempre temos solicitado um projeto cultural para as diásporas sem a qual a nossa cabo-verdianidade pode estar em perigo.

A morna* e a emigração
Por Luiz Silva
*Em 2019, a UNESCO, considerou a MORNA, patrimônio cultural e imaterial da humanidade.