A universalidade da morna está intimamente ligada à pluralidade dos seus
temas e a dinâmica dos seus emigrantes no quadro dum convívio direto com outras
culturas. Um grande número de mornas, escutadas religiosamente na diáspora,
surgiu nas comunidades emigrantes.
Dança-se a morna crioula com passos lentos,
numa paixão sonhadora, mas também com requebros das influências do tango e do
samba e do jazz nas colônias crioulas nos Estados Unidos. Os arranjos musicais
da morna refletem também essas influências: para um estudo profundo da morna,
seria bom recorrer à tradição oral, ouvir as comunidades ou ainda seguir o
modelo africano que se recorre aos «gritos»
para escrever a própria história.
A morna e a emigração fizeram sempre juntas o mesmo percurso. Viajaram
nos barcos baleeiros, nos porões dos barcos de passagem pelo Porto Grande ou no
fundo dos porões a caminho de São Tomé e Príncipe e nos anos sessenta sonharam
juntos ao abrir o caminho marítimo para Holanda, que libertou Cabo Verde das
fomes cíclicas, que transformou social e culturalmente a sociedade, investindo
na economia e na educação dos filhos e familiares, mas sempre com a esperança
de voltar, criando condições para o pós-independência.
Ignorar a relação entre a morna e a emigração reduz a sua universalidade.
O encontro da morna com o jazz, o tango e o samba foi benéfico. O próprio B. Leza
dizia que o samba também é nosso: antes de chegar ao Brasil, parou aqui. Temos
excelentes intérpretes do samba como Djosinha, Titina, Jorge Sousa, mas também grandes
artistas do jazz como o saxofonista Joe Gonçalves ou ainda Horace Silver que
tem continuidade musical em Carmen Sousa que continua a interpretar as suas
obras, também há a cantora da família saonicolense Vicky Vieira entre outros, do mesmo modo vale lembrar, que temos mornas na Argentina
com o balanço do tango.
A partir dos anos sessenta foi na Holanda que músicos e compositores de mornas como Frank Cavaquim, Luiz Morais, Morgadinho, Manuel d’Novas fizeram a sua evolução musical. Tanto Frank Cavaquinho como Manuel de Novas do contato com outras civilizações e culturas deu um novo engajamento à morna e a coladera.
A partir dos anos sessenta foi na Holanda que músicos e compositores de mornas como Frank Cavaquim, Luiz Morais, Morgadinho, Manuel d’Novas fizeram a sua evolução musical. Tanto Frank Cavaquinho como Manuel de Novas do contato com outras civilizações e culturas deu um novo engajamento à morna e a coladera.
Não se pode ignorar ainda a presença inglesa em São Vicente com uma elite
muito culta tanto ao nível do desporto como das artes. Os ingleses fizeram uma colonização
diferente dos portugueses: mandaram para as colônias pessoas de alta formação
para justificar o direito a impor os seus valores culturais e civilizacionais.
Para Rudyard Kipling, grande poeta anglófono, o dever da colonização é de levar
aos outros os valores culturais que possuem o que não aconteceu com a colonização
portuguesa. Os ingleses até possuíam o seu próprio cinema no Telegrafo e onde
trabalhavam alguns músicos como Djack do Carmo, autor da musica Flor Formosa,
gravadas pelo conjunto Voz de Cabo Verde ou ainda por Travadinha e que tem
percorrido o mundo.
A existência de dois cinemas em Mindelo, a começar pelo Éden Park criado
em 1922 e pertencente à família Marques da Silva e o cinema Park Mira Mar, a
partir dos anos cinquenta, deram uma contribuição importante à cultura musical cabo-verdiana
e acima de tudo mindelense. O cinema Éden Park esteve sempre disponível para
outras atividades culturais e desportivas como saraus, concertos, teatro, boxe
e outras atividades. Os filhos do Senhor César Marques, recentemente
condecorado postumamente pelo Presidente da Republica, Jorge Fonseca (Lulu
Marques, Djosa Marques e Tony Marques) se revelaram excelentes músicos. Fundaram
o conjunto Ritmos Cabo-verdianos, associando Chico Serra, que mais tarde é
recuperado pela Voz de Cabo Verde, Humbertona, Djack de Feliça e o vocalista
Longino, tendo mesmo gravado um disco de 45 tours em Portugal e organizado algumas
tournées pela Guiné-Bissau, Senegal e Portugal.
A formação da juventude mindelense muito se deve a estes dois cinemas
que desaparecem com a independência devido à política centralista e ditatorial
do partido único. O encerramento do Éden Park por falta de cuidados do Estado e
do Município foi o prenúncio da morte da cultura em Mindelo. Hoje a cidade do
Mindelo, devido à incúria da Câmara Municipal e do Governo, não possui um único
cinema a testemunhar do seu passado claridoso.
É justo aqui assinalar a importância do professor José Reis, (Bolama 20/3/1895/
Mindelo 16/10/1966), na formação musical dos jovens mindelenses. Filho de pais cabo-verdianos na Guiné e de origem
boa-vistense chegou a São Vicente em 1929, depois de estudos em grandes conservatórias
portuguesas e italianas. Começou por abrir uma escola de música na qual
ensinava piano, violino, violoncelo, passando depois a exercer as funções de
regente da Banda Municipal de Mindelo e, por fim, as de professor de Canto
Coral no Liceu Gil Eanes e na Escola Técnica.
A maioria dos grandes músicos cabo-verdianos passaram pela sua escola
tais como Jorge Monteiro (Jotamont), regente da Banda Municipal da Praia e
depois em São Vicente, Manuel Santiago, Mané Raquinta, Pitrinha, o autor da
morna Traiçoeira de Dakar e que emigrou para a Argentina, Morgadinho, Duca de Nhô
Pitra, Luís Morais, Manuel Tidjena, Lourenço Lopes, Djosinha de Bernarda e
outros. Chegou a dar concertos no Cinema Éden Park em que o público podia
aplaudir a execução de obras de Bach, Bethoven, Chopin, Schubert, Haydn,
Strauss e outros. Falando da morna num artigo intitulado Subsídios para o
estudo da Morna, publicado post-morte, Félix Monteiro em Raízes n° 21, ele diz:
… ela nasceu do povo que a criou,
banhando-o com as lagrimas das suas mortificações, resignações e sofrimentos, e
também porque essas melodias não são outra coisa senão a exaltação ou o
queixume eterno da alma cabo-verdiana, no que ela tem de mais comovente, de
mais extravagante e de mais tumultuoso».
Para uma melhor justiça não se pode esquecer a Igreja Salesiana onde se
formou o Paulino Vieira, um dos maiores músicos cabo-verdianos de todos os
tempos, que dirigiu artistas como Bana, Cesária Évora, Titina, Dulce Matias,
Celina Pereira, Dudu Araújo e formou uma nova geração de músicos como Tito
Paris e outros.
Também se pode fazer referencia a contribuição no plano musical dos
racionalistas cristãos vindos do Brasil: é o caso do emigrante Augusto Messias
de Burgo um dos introdutores do Racionalismo Cristão em Cabo Verde, músico de
alta qualidade, que publicou no ano de 1936, em São Paulo, Brasil, o livro Musica
e Músicos, enquanto que o Cônego Teixeira, excomungado pela Papa, no ano de
1912 por se declarar espirita, foi professor de musica e defensor da língua
materna cabo-verdiana. O compositor Manuel de Novas também se declarava
racionalista cristão.
Apos a Independência surge uma nova geração de compositores do qual se
destaca Manuel de Novas com novos temas que vão do amor à emigração pela
qual pede um pouco de justiça: neto do grande compositor santantonense Jacinto
Estrela autor de lindas mornas e que musicou textos de Antônio Caldeira Marques
e Gabriel Mariano, inspirando-se do binômio «si tchuva bem morrê fogode//si
tchuva ca bem morrê di fome».
Escolher dez mornas entre as centenas de mornas escritas pelos
emigrantes e sobre a temática de emigração é um exercício muito difícil. Por uma
questão de antiguidade e respeito pelos mais velhos, deixei de lado alguns
compositores como o Teófilo Chantre o seu Cabo-verdiano Emigrante, o Jovino dos
Santos e o seu álbum “Ex-ilhas”, o
Eça Monteiro, o Betu e a celebre morna Manu, o Catchaço, que foi emigrante em
França e modernizou o batuco de Santiago, o Norberto Tavares, o malogrado Djoia
autor da morna Suplica, o Teófilo Chantre com o seu Cabo-verdiano Emigrante, o
Jovino dos Santos com CD “Ex-ilhas”,
exclusivamente dedicado à emigração em França, o cantor Eça Monteiro o
violinista Júlio Thomas, os guitarristas José Thomas e irmão, o Cesar David, Damiao
Mathias, John Euclides e outros.
As viagens mudam os homens e é o
caso de Manuel de Novas, marítimo e emigrante na Holanda, que graças aos contatos
com outros povos e civilizações, se distinguiu ao abordar os grandes temas da
sociedade cabo-verdiana. A emigração foi
e será sempre uma resposta politica e a morna a sua expressão maior. E é por
isso que sempre temos solicitado um projeto cultural para as diásporas sem a
qual a nossa cabo-verdianidade pode estar em perigo.
A morna* e a emigração
A morna* e a emigração
Por Luiz Silva
*Em 2019, a UNESCO, considerou a MORNA, patrimônio cultural e imaterial da humanidade.